Introdução

A primeira máquina impressora das Américas chegou na região que hoje constitui o México no ano de 1539, portanto quase um século antes do surgimento de colônias inglesas. Bem antes disso, no entanto, já havia despontado uma indústria de confecção e montagem de obras escritas, se levarmos em conta códices e outros manuscritos criados por civilizações indígenas da região. A finalidade da confecção de livros tem um caráter singular: disseminar uma visão ou mensagem para uma audiência específica. Os contextos das diferentes mensagens, por outro lado, são bem mais plurais. Circunstâncias religiosas, políticas e econômicas sempre foram grandes fatores propulsores de novas técnicas de confecção. Esse é justamente o pano de fundo para o surgimento, nos dias atuais, de um tipo relativamente recente de livro: o cartonero.

"Kosamalotlahtol: Arcoíris de la palabra", portada
Cover, painted in green, with a chile ristra. —— Portada, pintada de verde con una ristra.
"Kosamalotlahtol: Arcoíris de la palabra", portada

O modelo cartonero utiliza papelão reciclado e corrugado para a confecção de capas e contracapas. Uma das técnicas é a pintura a mão, que cria um visual mais atrativo. O trabalho individual exigido para a criação de cada exemplar explica as tiragens limitadas e a propensão para imperfeições humanas.

"Una mirada a Tochikahuallis: Nuestra fortaleza: memoria de la reconstrucción en Xoxocotla, Morelos", portada
Cover of cartonera, painted in shades of blue, green, and yellow. —— Portada de cartonera, pintada de azul, verde, y amarilla.
"Una mirada a Tochikahuallis: Nuestra fortaleza: memoria de la reconstrucción en Xoxocotla, Morelos", portada

As obras geralmente são constituídas de pequenas publicações como folhetos com poemas, ensaios ou contos que são primeiro impressos em papel comum de escritório e depois costurados no papelão. Às vezes, a última página é colada à contracapa para que capa e obra permaneçam grudadas. Uma tendência recente é a numeração de cada livro para destacar o fato de que a publicação tem tiragem limitada.

Página de derechos de autor
Copyright page for a cartonera made and published in Uruguay. —— Página de derechos para una cartonera hecha y publicada en Uruguay.

Surgido em 2003 na Argentina como reação a uma das crises econômicas, o modelo cartonero foi criado por escritores e editores como uma opção viável para o incentivo à leitura a custos acessíveis. Ao lançar mão de materiais reciclados, esses criadores conseguiram contornar editoras tradicionais dominantes e inventar um modelo econômico que favorecia ao mesmo tempo consumidor e criador, refletindo o espírito faça-você-mesmo em épocas de recessão econômica. Celis Carbajal (2009, 17) explica que “Ao usar desse modo o papel e o papelão reciclado, as cartoneras concretizam soluções globais como a reciclagem e promovem, ao mesmo tempo, a leitura, o amor pela literatura, a liberdade de expressão e o simples prazer de existir sem qualquer norma estabelecida”. Desde seus modestos primórdios, as cartoneras vêm se transformando gradativamente para atender às demandas de um mercado cada vez mais interessado. Ou seja, já existem obras cartoneras sendo vendidas por centenas de dólares como opções artísticas, enquanto outras ainda mantêm sua missão original de alcançar as massas. Em suma, Bell, Unprateeb Flynn e “O’Hare (2022, 12) estão corretos ao afirmar que cartoneras podem ser ao mesmo tempo “objetos de arte, textos, fichas de troca, panfletos, recursos educativos, meios de congregação, ferramentas de ativismo, objetos de protesto, geradores de renda – enfim, objetos artesanais aparentemente simples mas que conseguem ser todas essas coisas simultaneamente”.

"Kosamalotlahtol: Arcoíris de la palabra", última página
Back page showing limited edition. —— La última página donde se muestra que es una edición limitada.
"Kosamalotlahtol: Arcoíris de la palabra", última página

Recortes em papelão consegue de maneira singela explorar várias facetas do tema identidade ao trazer uma amostragem de obras oriundas da Coleção Latino-Americana Nettie Lee Benson. Caracterizado antes de tudo por seu espírito rebelde, o movimento cartonero vem conseguindo propiciar um espaço de inclusão para grupos historicamente excluídos do mundo editorial dominante. As seções a seguir examinam obras que promovem diversas vozes indígenas, LGBTQ e feministas. Ao mesmo tempo, o objetivo é demonstrar a popularidade das cartoneras em toda a América Latina e, por isso, selecionamos autores(as) representativos dos seguintes países: Argentina, Brasil, República Dominicana, Guatemala, México, Peru, Porto Rico e Uruguai.